Sociedade se acostumou a condenar quem “larga” seu idoso em um asilo

Mas só quem passa por esta experiência sabe quanto delicada é a situação e difícil este caminho. É o que nos conta Eliane Sobral *, na história a seguir. O relato abre uma série de casos da vida real, que vão ilustrar as dores e as delícias do envelhecer.  Acompanhem!

Hoje ela faz 85 anos. E há 56 anos e nove meses estamos juntas. Do passado distante, lembro das unhas sempre compridas e pintadas de vermelho. Ela sempre adorou vermelho. Lembro do batom – aquele de estojinho verde da Avon e do perfume Toque de Amor (que eu usava escondido para ir para a escola). Lembro que sempre foi uma mulher bonita, vaidosa. E, apesar dos poucos recursos dos quais dispúnhamos, estava sempre muito bem arrumada. 

Veio de Pernambuco com 14 anos. A viagem no pau-de-arara durou três dias e três noites, como ela sempre gosta de contar. Chegou em São Paulo sem eira e nem beira. Foi trabalhar de doméstica, chorou de fome e, quando ascendeu profissionalmente, virou metalúrgica. 

Sempre teve em mente que teria sua própria casa para morar e não mais que dois filhos. Acabou adotando a terceira. Lembro de um conjunto de lã verde musgo. Saia e casaquinho com botões grandes nas costas. Lembro também de um vestido florido, também verde, e de um blazer com grandes flores vermelhas que ganhou do meu pai – não sei se no dia das mães ou em um 14 de setembro. O vestido de noiva – lindíssimo – não sobrou nada. Retalhei para fazer roupinhas para as minhas bonecas… 

Sempre foi uma mulher forte e de opinião. Puxou a peixeira para uma vizinha que insistia em chamar sua mais velha, em tom jocoso, de baianinha. Todos na casa rezavam pela sua cartilha e quem quisesse contrariar ou pedir algo, sempre esperava ela acender o cigarro porque aparentava ficar mais calma. 

Não foi mulher de muitos amantes. Mas os que passaram por sua vida, estavam sempre a seus pés. Por medo, respeito e amor. Aqui também era ela quem dava as cartas. 

Quando perdeu o primeiro marido, acusou o golpe, mas não caiu. Com o segundo foi diferente. Não que gostasse mais deste do que daquele. Com o primeiro viveu mais de 30 anos. Com o segundo, não passou dos sete. O primeiro, porém, foi companheiro de batalha, de vida dura, de educar as filhas, dar conta da casa, de pagar as contas. O segundo veio quando ela achava que já tinha cumprido a missão. Daí, só bailes da terceira idade, escapadas para a praia, pizzas às sextas e até um estoque de filmes pornô. 

Quando o segundo se foi, parece ter levado também essa alegria de viver. Não sei se ela se achou velha para começar de novo, se não teve forças para recomeçar – mais uma vez. Fato é que se deixou cair. E nunca mais se levantou. Como os anos não diminuíram seu ímpeto, nem sua personalidade difícil, logo ela se transformou em uma questão a ser administrada pelas filhas. 

Dizem que quando envelhecemos, voltamos a ser criança. Não creio. Porque criança, normalmente, obedece aos mais velhos. Já os mais velhos… Ah, estes! 

Disposta a fazer nada e passar o dia inteiro diante da televisão, logo ela começou a ter dificuldades de locomoção. Inexplicavelmente começou a cair – mas os tombos só aconteciam quando havia alguém por perto para acudir. 

Foi viver com a filha do meio, pelo tempo necessário para se recuperar e voltar para a própria casa. Ficou duas semanas. Não queria fazer fisioterapia, muito menos seguir as recomendações de uma nutricionista. Não se dava também com a empregada que as filhas contrataram para cuidar dela. Enfim, quanto mais o tempo passava, mais caótica ficava a situação. Até que ela própria pediu que procurassem uma casa de saúde, onde ela pudesse se recuperar. 

Depois de inúmeras tentativas, ela parece estar bem na casa atual. Mas em todas, e é bom que se ressalve, em absolutamente todas, é ela que manda prender e manda soltar. As cuidadoras parecem ter um carinho verdadeiro por ela. E os demais internos, claramente, têm medo. Só ela tem uma poltrona exclusiva na sala de TV. E ninguém, em sã ou insana consciência, se atreve a sentar lá, quando ela dá uma saidinha. Fisioterapia, faz quando tem vontade – e quase nunca tem. 

O combinado era ela se empenhar na fisio, na dieta, ficar bem e voltar para a casa dela. Nunca cumpriu. 

Por muito tempo, muito mesmo, convivi com a culpa de ter colocado minha mãe num asilo. E várias vezes ela própria disse que nunca imaginou que, tendo três filhas mulheres, iria parar num asilo. 

Durante muito tempo a culpa foi minha companheira constante. E eu não conseguia assimilar como uma mulher como ela, a chefe da família, a geniosa, a manda chuva, tinha se deixado levar àquele ponto. Demorou muitos anos para que eu entendesse que ela fez as escolhas erradas e pagou por isso. E que, por mais que eu quisesse e tentasse, não a teria feito enxergar de outra forma.

Hoje, percebo que cada um escolhe seu caminho. Que o outro pode alertar, ajudar, indicar atalhos, mas escolha é e será sempre de cada um. Nestes dez anos que ela está num asilo, ou numa casa de repouso, ou numa clínica, como eu e minhas irmãs preferimos chamar, ela nunca ficou sem receber nossa visita.

Minha irmã mais velha vai aos sábados, eu aos domingos. A mais nova vai quando dá. Antes da pandemia, ela vinha sempre passar uns dias na minha casa, especialmente em feriados prolongados. Os passeios também sempre foram constantes. Praia, feijoada na quadra da escola de samba, que ela adora. Enfim, o que está ao nosso alcance e sempre um pouco mais. 

Nos últimos tempos, tenho dito e repetido que se cheguei aonde cheguei, se sou quem eu sou, devo a ela. E agradeço. Percebo que ela fica orgulhosa e com aquele olhar de “missão cumprida”. 

Hoje ela faz 85 anos. Está bem cuidada, saudável, tocando o terror no asilo e sendo paparicada pelas cuidadoras. Custou-me muito ficar com o coração em paz – embora eu ainda me pergunte se fizemos o certo ou não. 

Minha irmã mais velha se incomodava um pouco com o que os outros iam pensar sobre a decisão de colocar nossa mãe num asilo. Não sei se ainda se incomoda. A mim, nunca incomodou. E não incomodará. Porque só ela, eu e as minhas irmãs sabemos da nossa história. 

A mim o que importa é que ela esteja bem. Que tenha sempre a certeza de que ela é o grande amor da minha vida. E que, quando a pandemia passar, eu vou tocar Spyrogiro do Jorge Benjor, que ela ama, sempre que ela entrar no meu carro para gente ir passear.  

*Eliane Sobral, filha do meio da dona Maria do Carmo Barbosa Sobral, que em 14 de setembro de 2020 faz 85 anos, é jornalista e colaboradora do Casa de Mãe.  

Leia também: Como habitarei quando envelhecer?

Autor: Rachel Cardoso

Sou jornalista e filha única. Aficionada por Esporte e Saúde. Em mais de 20 anos de carreira fiz reportagens sobre diversos temas. Atualmente, colaboro com diversos canais digitais, todos ligados a temas deste Brasil Sênior. Também sou sócia-diretora na Tot Conteúdo Digital. Graças a esse histórico, pude mudar a direção da minha vida e estar perto dos meus pais para acompanhar o processo de envelhecimento deles. Esse blog é consequência disso. Escrever é uma paixão!

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