Se a morte é natural, porque é tão complicado falar sobre ela?

As últimas semanas foram marcadas pela passagem de muitos conhecidos, parentes e amigos queridos. Mais de três velórios em pouco menos de 30 dias, um ritual que levou-me ao questionamento sobre a finitude da vida e como quero planejar o meu fim. Sim, pois sabemos que ninguém veio aqui ficar para semente, é fato.

Sou estudiosa da filosofia espírita e encontrei nela a didática que mais sentido faz,  pra mim.  Mas está claro que tem algumas coisas que não consigo aceitar bem, como aguentar o sofrimento até o último suspiro para cumprir minha missão. A fé exige raciocínio. E acredito que tenha alguns direitos além de deveres.

A questão vai além de religiosidade. 

Legalmente também é complicado.  Conversei com um advogado que me esclareceu (leia abaixo) todos os obstáculos que posso enfrentar para que respeitem minha vontade, em casos de doença terminal, sem perspectiva de melhora em curto prazo. Ele vai me orientar nessa parte, pois eu quero deixar tudo pronto. Vou dar spoiler do gran finale, por suposto!

Essa decisão não foi tomada de uma hora para a outra. A primeira vez que tive contato com a ortotanásia (boa morte, supostamente sem sofrimento.) foi durante uma palestra sobre cuidados paliativos na Universidade Aberta a Terceira Idade da USP, a UniAti. O tema voltou à tona com a agonia de um grande amigo da família e a decisão pela esposa dele de não deixar que o entubassem.

Também me trouxe questionamento o velório de uma tia. Foi uma ocasião, recente,  em que a família, que não se via há muito,  estava reunida. Isso me fez pensar se não era o caso de celebrarmos reencontros, enquanto estamos vivos e não durante a morte de alguém, ou seja, depois que um ente querido nos deixou…

Nesse ponto, uma amiga querida, que perdeu a mãe num acidente automobilístico de forma chocante, me contou que esse ritual é necessário para aqueles que ficam processar a partida do seu ente.  Porque, embora  esperada,  nunca é fácil lidar com o vazio  que a morte deixa.

Embora cada país tenha suas heranças, a vivência do luto é comum em todas as culturas.  

No Brasil, temos os enterros ou a cremação do corpo, velórios de até 48 horas, orações, flores e velas. Então, faz sentido velar o corpo, mas deixo aqui registrado que quero música alegre e bebida. Se possível, alguns petiscos também. Veganos, de preferência. E nem me venham com aquela musiquinha sinistra… “Segura na mão de Deus e vai…”.

Ficaria feliz de seguir ao som de Miles Davis. Seria uma excelente trilha musical para encerrar a jornada.

Se eu agonizar e precisar ficar ligada à máquinas, peço por favor, que mandem  desligar os aparelhos.  Penso que a perda total  da autonomia é uma das piores coisas que pode acontecer a alguém, na minha modesta opinião. Creio que  enlouqueceria. Em menor escala, já vejo em Casa, como minha mãe sofre, mesmo sendo muito  lúcida e não totalmente dependente.

Dialogar sobre morte tende a ser angustiante, mas precisamos falar sobre a finitude da vida. O cuidado paliativo prioriza a prevenção e alívio de sintomas de sofrimento em doenças terminais. Mas, até que ponto realmente aliviam o sofrimento de quem está doente? E da família? Numa sociedade dita democrática,  e que envelhece a passos largos, acho importante e necessário esse debate.

Esta é a quarta vez que começo a escrever simplesmente porque não conseguia ir adiante. Se a morte é natural porque é tão complicado falar sobre ela?

O mesmo ocorre com a nossa falta de educação financeira. Sou de uma geração marcada pelo consumismo. Talvez, porque não nos tenham ensinado de criança a poupar e a dar o devido valor às coisas que, com certeza, não levaremos no final.

 Assim como ninguém tem a fórmula para enfrentar a morte, como algo do tipo “olha é por ali o caminho menos sofrido”.  Agora, eu acho que deveríamos aprender a lidar e nos preparar para essa fase da vida. Inclusive para poupar aqueles que ficam de tanto sofrimento.  

Por via das dúvidas, já inclui no orçamento mensal meu boleto do juízo final.

Leia a seguir a entrevista de Ricardo Rodrigues Fontes, advogado do Escritório Fontes, Kuntz & Amaral Associados.  

O ortotanásia é permitida no Brasil? 

Sim, desde que atendidas as resoluções do Conselho de Medicina. Trata-se de uma questão muito complexa. No contexto da atual discussão, é muito importante ter presente a distinção entre o direito a uma morte digna e o direito à decisão sobre a morte. O direito de morrer dignamente está relacionado com o desejo de se ter uma morte natural, humanizada, sem o prolongamento da vida e do sofrimento por meio de tratamento comprovadamente ineficaz. Já o direito de morrer é sinônimo de eutanásia ou de auxílio a suicídio, intervenções que causam a morte. Mas o paciente pode optar pela não intervenção, impedindo procedimentos médicos que possam ser considerados invasivos ou artificiais, que prolonguem a vida com sofrimento.

Minha vontade será respeitada se estiver devidamente documentada

Em caso de doenças graves e incuráveis, pode ser elaborado um documento com “diretivas antecipadas de vontade” ou de “termo de consentimento informado”, nos quais se dispõe acerca dos cuidados, tratamentos e procedimentos a que o indivíduo deseja ou não ser submetido quando a morte se aproxima, ocorrendo à ortotanásia. Questão que passou a ser considerada eficaz pelo  Judiciário, após as Resoluções 1.805/2006 e 1995/2012 do Conselho Federal de Medicina (CFM), confirmadas pelo Código de Ética Médica (Resolução CFM 1931/2009) permitem que pacientes em fase terminal optem pela ortotanásia. É preciso destacar que o Ministério Público Federal ingressou com a Ação Civil Pública nº 2007.34.00.014809-3, que atacou a Resolução Conselho Federal de Medicina, nº 1.805/06 para anular a regulamentação da ortotanásia, sendo declarado improcedente o pedido do MPT.

O que a lei diz sobre desligar aparelhos no caso de sobrevida apenas garantida pelas máquinas? Quais as implicações para familiares e profissionais como médicos e gestores de hospitais?

Como o assunto é complexo, apresento a seguir duas decisões judiciais distintas.   A primeira assegura ao paciente o direito à ortotanásia. O primeiro exemplo leva em consideração um paciente com o pé esquerdo necrosado, que se nega à amputação, preferindo, conforme laudo psicológico, morrer para “aliviar o sofrimento”; e, conforme laudo psiquiátrico se encontra em pleno gozo das faculdades mentais. Assim, o Estado não pode invadir seu corpo e realizar a cirurgia mutilatória contra a sua vontade, mesmo que seja pelo motivo nobre de salvar sua vida. No segundo caso, em razão da paciente não sofrer qualquer doença grave, foi declarada a falta de interesse de agir em juízo da paciente. Fica entendido que a manifestação de vontade na elaboração de testamento vital gera efeitos independentemente da chancela judicial. A autora poderá se valer ainda de testemunhas e atestados médicos para uma declaração do direito à ortotanásia. Destaco ainda que o paciente tem o direito à informação assegurada pela Constituição Federal, em seu art. 5º, XIV. A verdade é fundamental para a tomada de decisão. Assim, os artigos 46 e 47 do Código de Ética Médica proíbem o médico de: efetuar qualquer procedimento médico sem o esclarecimento e consentimento prévio do paciente ou de seu responsável legal, salvo em caso de iminente perigo da vida. E de exercer sua autoridade de maneira a limitar o direito do paciente de decidir livremente sobre a sua pessoa ou seu bem-estar.

Como, juridicamente, devemos nos preparar para morrer sem deixar um ônus para os familiares

Não há transferência de eventuais dívidas do falecido para seus herdeiros. No caso, se houver herança, será realizado o inventário dos bens, existindo a possibilidade de doação em vida dos bens.